O realizador de cinema Sam Mendes


Sam Mendes, descente de madeirenses, é o realizador do filme "American Beauty" (Beleza Americana), com Kevin Spacey e Annette Bening.

Sam Mendes tem nacionalidade britânica e é filho de Peter Mendes, um professor de Literatura na Universidade de Reading (nos arredores da capital inglesa) que lhe deu o nome Samuel Alexander em homenagem aos escritores Samuel Beckett e Alexander Pope. O pai, que está já aposentado, descende de famílias de emigrantes madeirenses em Trindade e Tobago, mas desde há muito que vive em Londres. A mãe, Valery, é originária de uma comunidade judia da Polónia e escreve livros para crianças. Os seus pais divorciaram-se quando tinha apenas 5 anos, passando o jovem Sam a viver com a mãe.
A carreira escolar não teve grande história, mas foi nessa fase que veio ao de cima a paixão pelo teatro. Fundou uma companhia de teatro juvenil, a Watershed Floating Theatre Company, e mais tarde foi recrutado para o Festival de Teatro de Chichester, como assistente de direcção.
Certo dia um dos encenadores decidiu abandonar a peça e coube a Sam Mendes, então com 23 anos, a difícil missão de substituí-lo. A peça correu tão bem que o novel encenador foi convidado para dirigir peças no conceituado Theatre Royal Haymarket, em Londres.
Mais recentemente tem estado ligado ao grupo de teatro Donmar Warehouse. Apesar de ser relativamente curta, a carreira de Sam Mendes pelo teatro está recheada de êxitos, coleccionando no seu currículo 45 prémios Olivier (considerados os "Oscar do teatro britânico") por peças como "Oliver!", "Othello", "The Glass Menagerie", "Cabaret" e "The Blue Room" (esta com Nicole Kidman no elenco).
O assédio da sétima arte começou a se fazer sentir. Sam Mendes recebeu dezenas de guiões dos Estados Unidos mas só um o fez saltar para a outra paixão de sempre, o cinema. Trata-se de "American Beauty", escrito por Alan Ball, que relata o caso do desmoronamento de uma família típica norte-americana.
A história transposta para o grande ecrã está a fazer furor. Sam passou a celebridade. Faz parte do círculo de amigos pessoais de Steven Spielberg, cuja produtora cinematográfica Dreamworks fez "American Beauty", e esteve, em Sydney, entre os convidados da festa da passagem de ano a bordo do iate do casal Tom Cruise/Nicole Kidman.
O filme encontra-se em exibição no continente desde o final de 1999.
Curiosamente, ainda no chegou às salas de cinema da ilha de origem da família do seu realizador. Sam Mendes desconhece esta ligação à Madeira.
Aliás, de Portugal, a única coisa que já viu foi Lisboa, cidade que o encantou e que espera visitar novamente. De resto, só duas marcas desse longínquo passado lusitano: os indisfarsáveis traços fisionómicos e o apelido Mendes que transmitido há quatro gerações (sempre pelo lado paterno) desde a saída da Madeira.
Esta amnésia sobre o passado madeirense da família não será fortuita. A forma como os antepassados de Sam Mendes deixaram a nossa ilha, no ano de 1846, são para esquecer. Não algo que se queira guardar no baú das recordações. A "estria" começa alguns anos antes daquela data e faz parte de um dos piores episódios de perseguição e intolerância religiosa da história da Madeira.
Tudo começou em 1838, com a chegada ao Funchal do cirurgião e farmacêutico Robert Reid Kalley, um médico missionário da Igreja Presbiteriana da Escócia. Inicialmente, o destino do clínico escocês era a China, mas a frágil saúde de Margarida, sua esposa, levou-o a optar pela ilha da Madeira.

Jo-Anne S. Ferreira, uma investigadora da história da comunidade portuguesa em Trindade e Tobago, relata como foram os primeiros tempos de estadia: Ao princípio, Kalley foi bem recebido por todos, desde o bispo que viria a ser seu amigo até ao povo. Com os seus próprios recursos abriu um dispensário, um pequeno hospital de doze camas, um consultório e uma farmácia. A sua acção de beneficência estendeu-se à esfera da educação, tendo estabelecido várias escolas primrias, diurnas para crianças e noturnas para adultos, escolas essas que funcionaram em choupanas no Funchal e em quintas no campo, sobretudo no Santo da Serra, Machico e São Roque. Um total aproximado de 2.500 madeirenses inscreveu-se nas escolas domésticas de Kalley.

As autoridades apreciaram, ao princípio, as contribuições de Kalley no campo da medicina e da educação, pela ajuda prestada aos pobres ao nível da saúde e da alfabetização. A Câmara Municipal do Funchal dirigiu-lhe publicamente um alevantado elogio pelos serviços prestados à instrução e pelos atos de filantropia praticados para com os deserdados da fortuna, e o governo da metrópole isentou do pagamento de direitos na alfândega desta cidade os medicamentos que importasse destinados ao tratamento dos pobres, observa o Elucidário Madeirense.
Mais tarde, porém, quando a sua pregação a milhares de pessoas, ricas e pobres, levou à conversão de muitos madeirenses à fé evangélica, "o bom doutor inglês" e o "santo inglês" passa a ser apelidado de "aquele lobo da Escócia". Muitos dos serviços prestados por Robert Reid Kalley nos domínios da saúde e da educação eram gratuitos. Daí ter granjeado muita popularidade.
Em troca da consulta, os seus doentes eram apenas obrigados a ouvir os pregões do médico-missionário.

O Elucidário Madeirense (não esqueçamos que foi seu co-autor o padre católico Fernando Augusto da Silva) refere-se a Kalley nos seguintes termos: “Tornou-se célebre pelo proselitismo protestante que largamente exerceu entre nós e pelas graves perturbações que trouxe ao seio da família madeirense (...). Seria sem dúvida um crente, mas era sobretudo um fanático.
Dominava-o um feroz e odiento sectarismo, e nunca teria arredado um passo na sua audaciosa e incansável propaganda, se o não houvessem forçado a abandonar precipitadamente esta ilha (...). Veio para o meio de nós arrancar ao povo as crenças dos seus maiores e levar ao seio das famílias as mais funestas dissenções».

Numa ilha que até então só conhecia praticamente o culto católico, a conversão de fiéis a uma doutrina protestante gerou polémica. Kalley tornou-se uma figura incómoda para a Igreja local. Em 1843, cinco anos após a sua chegada, começaram as detenções. Por terem tomado a comunhão na igreja escocesa, Nicolau Tolentino Vieira e Francisco Pires Soares foram excomungados e condenados em tribunal. Durante seis meses andaram escondidos em casas de amigos, por vários sítios da ilha, para fugir à prisão. Relatos históricos, do lado dos presbiterianos, lembram que, nesse mesmo ano, o jornal local "Imparcial" começou a recomendar abertamente o chicote, a forca e a fogueira como únicos meios "de cura da heresia" dos adeptos do novo culto. A 2 de Maio de 1844, Maria Joaquina Alves foi condenada morte por blasfémia e heresia. Graças intervenção da comunidade inglesa, a pena foi comutada para três meses de prisão.

O próprio Kalley foi preso por um período de seis meses, durante o qual o reverendo William Hepburn Hewitson chegou ilha para uma estadia de um ano, sem ter tido qualquer contacto anterior com Kalley, possibilitando assim continuar o seu trabalho, embora com limitações estipuladas por decreto.
Nesta ilha católica, os adeptos madeirenses de Kalley encontraram muita hostilidade e intolerância. Não podiam possuir nem ler a Bíblia Sagrada, a mesma edição aprovada pela rainha D. Maria II para uso nos Açores era um "crime de heresia", punível com a excomunhão e/ou a deportação. Os "hereges calvinistas" eram fugitivos numa terra que era a sua própria terra, e perseguidos na sua ilha natal, refere Jo-Anne S. Ferreira, num artigo publicado na revista Islenha.
O cume da perseguição religiosa foi atingido em Agosto de 1846. Os primeiros acontecimentos violentos terão acontecido no dia 2, quando a casa de duas senhoras inglesas, de apelido Rutherford, foi invadida por uma multidão enfurecida, que sabia da realização de uma cerimónia presbiteriana conduzida pelo já citado Hewitson.
A casa, conhecida como Quinta das Angústias (hoje Quinta Vigia), foi alvo da raiva popular e só a intervenção da polícia evitou a morte de pessoas. Na semana seguinte, casas e terrenos de madeirenses convertidos foram atacados. A 9 de Agosto, cerca de duzentos populares, comandados pelo cónego Teles, deitam fogo casa onde vivia Kalley, na Quinta do Vale Formoso. O médico, ao aperceber-se do povo que rodeava a casa com archotes de fogo, conseguiu fugir, tendo encontrado abrigo na casa de um seu conterrâneo. Dias depois, alcançou um navio inglês que estava no porto do Funchal, tendo para tal sido transportado numa rede e disfarçado com roupas de mulher.
Entre 9 e 23 de Agosto, dois navios militares ingleses dispararam as suas armas em intervalos regulares, dando confiança aos presbiterianos madeirenses, que entretanto haviam procurado refúgio nas montanhas, para descerem até ao porto. O rumo que depois tomaram foi as Antilhas. A perseguição religiosa terá coincidido com um plano inglês de recrutar trabalhadores para Trindade, Antígua e St. Kitts. Alis, os barcos ingleses que transportaram os primeiros refugiados religiosos terão sido financiados por proprietários de plantações naqueles destinos.
Na realidade, o contingente de emigrantes que em meados do século passado partiram para Trindade e Tobago era constituído por dois grandes grupos: trabalhadores rurais católicos e refugiados religiosos presbiterianos. Neste último estava um madeirense de nome Francisco Mendes (tetravô do realizador Sam Mendes), que, ao que se sabe, na Madeira no exercera qualquer papel de relevo no seio da comunidade presbiteriana. No entanto, um seu filho, Alfred Mendes de seu nome, cedo passou a ocupar posição de destaque entre a comunidade emigrante. Comerciante de profissão, esteve entre os fundadores do Portuguese Club e foi o seu primeiro presidente, tendo chefiado a organização em dois períodos, 1927-1932 e 1937-1938. Foi também co-fundador e primeiro presidente da Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro, fundada em 1922. Estas duas organizações agrupam os descendentes das famílias portuguesas, 90 por cento das quais so oriundas da Madeira.
Alfred Mendes foi ainda nomeado vice-cônsul de Portugal em Trindade e Tobago, cargo que exerceu entre 1931 e 1948.
Alfred Mendes teve um filho em 1897, a quem deu o nome de Alfred Hubert Mendes. Se o pai se notabilizou no campo associativo, o filho foi figura ilustre no domínio político-cultural. Foi funcionário público e chegou a diretor geral da Autoridade Portuária de Trindade e Tobago. Teve três filhos, um dos quais Peter Mendes, o professor universitário que é pai de Sam Mendes.
Mas a faceta mais conhecida de Alfred Hubert Mendes é a de escritor.
Publicou dois grandes romances, "Pitch Lake" (que fala sobre a emigração portuguesa para Trindade e Tobago) e "Black Fauns", albúm de 60 pequenas histórias e muitos poemas. Foi um dos co-fundadores da revista de tendência socialista "The Beacon", onde eram publicados ensaios literários e políticos. No número de Setembro de 1932, por exemplo, sai uma entrevista com o "camarada Estaline". Mendes era o mais prolífero escritor do revolucionário "grupo Beacon", que incluía nomes como Albert Gomes, C. L. R. James ou Ralph de Boissire, e que floresceu na década de 30.
Albert Hubert Mendes hoje citado como um dos pioneiros da literatura das Caraíbas. Como reconhecimento da sua obra recebeu um doutoramento "honoris causa" pela Universidade das Índias Ocidentais em 1972. Faleceu em 1991, em Barbados, com a idade de 94 anos, quando preparava uma autobiografia que nunca chegou a ser publicada.
Sam Mendes no planeia fazer um filme sobre a história da sua família. Não que não haja material suficiente para um argumento. Antes porque a desconhece por completo, incluindo a ligação dos Mendes aos incidentes religiosos do século passado na Madeira. Entretanto, há já quem esteja a
juntar informações para relatar este e outros episódios da história da emigração madeirense em livro. É o caso de Ferreira Fernandes, jornalista da revista "Focus".

por Miguel Fernandes Luís  
(Diário de Notícias - 2000-02-27)

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